A primeira oposição a Trump veio de uma peça inesperada neste xadrez: uma bispa

Após a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, a geopolítica contemporânea revelou-se como um complexo tabuleiro de xadrez. E o primeiro xeque ao “rei laranja” veio de uma peça inesperada nesse jogo: o bispo.

Ou melhor, de Mariann Edgar Budde, uma bispa.

Protestante.

"A grande maioria dos imigrantes não é criminosa", diz bispa episcopal a Trump Reuters
"A grande maioria dos imigrantes não é criminosa", diz bispa episcopal a Trump: Reuters

Mariann Edgar Budde, de 65 anos, mãe de dois filhos, é bispa da comunidade episcopal de Washington. Durante a cerimônia ecumênica tradicional no dia seguinte à posse presidencial, Budde deixou Trump visivelmente desconfortável na primeira fila da Catedral Nacional de Washington. A razão?

Trump, em seu discurso de posse, declarou ter sentido “a mão providencial e amorosa de Deus” sobre si. Budde, em contrapartida, usou o púlpito para requisitar o papel profético da Igreja:

“Em nome do nosso Deus, [Trump], tenha misericórdia das pessoas de nosso país que estão assustadas neste momento. Há crianças gays, lésbicas e transexuais em famílias que votam nos democratas. Alguns deles temem hoje por suas vidas. Uns podem não ser cidadãos americanos, outros não ter a documentação adequada para viver aqui, mas a grande maioria não é criminosa. Eles pagam impostos e são nossos bons vizinhos. São membros fiéis das nossas igrejas, templos, mesquitas e sinagogas. São nossos próximos.”

Mariann Edgar Budde

 

A cena foi emblemática. Ainda no primeiro dia de mandato, Trump deixava clara sua aversão a minorias, especialmente imigrantes indocumentados. Contudo, o que surpreendeu foi o lugar de onde veio a primeira oposição contundente: não de um político democrata, mas de um púlpito protestante.

Esse episódio revela como a religião é um campo intrinsecamente complexo. No Brasil, por exemplo, é comum associar o protestantismo ao conservadorismo político. E, de fato, a bancada evangélica no Congresso, com sua defesa da “família tradicional”, frequentemente alinha-se à direita. Mas Budde desmonta essa generalização: ela é cristã, protestante, episcopal e progressista. Sua postura ressoa com exemplos brasileiros, como os pastores Henrique Vieira e Kleber Lucas, que também defendem uma agenda pautada pela inclusão e pela justiça social.

Budde, na verdade, já vinha criticando Trump há tempos. Em 2020, ela se posicionou contra o presidente quando ele posou com uma Bíblia em frente à Igreja Episcopal de St. John, logo após a Guarda Nacional dispersar manifestantes com gás lacrimogêneo. O protesto era pelo assassinato de George Floyd – um símbolo da luta contra o racismo nos EUA.

After having police and National Guard units disperse protestors with flash-bang and tear gas munitions, President Trump posed for media with a bible in front of St. John’s Church.Credit...Doug Mills/The New York Times
Credito: Doug Mills/The New York Times

 

Esse episódio nos convida a refletir: religião não é política, mas tem implicações e papel políticos. As premissas teológicas e cosmológicas moldam visões de mundo, ainda que possam ser interpretadas de maneiras diametralmente distintas. A grande questão é que quando a religião se transforma em ferramenta de poder, “cidade de Deus” e “cidade dos homens” se confundem, e a experiência religiosa que alicerça a religião dá lugar aos interesses políticos que se apropriam dela para serem efetivados.

Pois enquanto cientista da religião, eu me faço duas perguntas básicas para tentar entender esta relação entre política e religião, não só para analisar esta relação pontual, mas também para entender melhor os vieses do fenômeno religioso:

Será que Trump realmente sentiu a “mão providencial de Deus” sobre sua cabeça (religião), ou utilizou a retórica religiosa para se legitimar como um eleito divino (política)? E Budde? Sua fala foi uma resposta estratégica para reafirmar o papel da Igreja quando um agente externo secularizado utiliza de seus símbolos para se legitimar (política), ou foi um gesto autêntico de quem, como bispa, acredita e defende os princípios cristãos de compaixão e amor ao próximo (religião)?

No final das contas, o embate entre Budde e Trump nos lembra de algo fundamental: assim como no xadrez, também na religião há bispos em ambos os lados do tabuleiro. O bispo não é necessariamente um político – no sentido institucional do termo, mas o movimento que ele faz neste jogo pode ter implicações drásticas políticas. O contrário também é verdadeiro, afinal, religião e política afetam-se mutualmente.

No entanto, a pergunta que pode reger tudo é: qual é a motivação que rege o movimento de cada peça por detrás de uma partida – fé ou poder?

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